O STJ reconheceu o cuidado como um valor jurídico
Os pais podem abandonar os filhos?
Qual a consequência desse ato na esfera civil para os genitores?
A criança sofre dano moral por terem sido abandonada?
São alguns dos assuntos tratados pela minha amiga Ana Lúcia Ricarte nesse
belíssimo artigo. Confira!
O Tribunal Superior condenou um pai a pagar uma indenização de R$ 200 mil reais por abandono de sua filha e esta decisão já vem sendo esperada pelos operadores do direito na área de família há
alguns anos, pois algumas decisões de renomados Tribunais brasileiros já haviam
decidido neste sentido. E este ano, finalmente, o tema teve um desfecho de
grande relevância social.
A relatora do processo foi a Ministra Nancy Andrighi que, com muita
propriedade, decidiu no sentido de que ‘Amar é faculdade, cuidar é dever‘. As
relações familiares têm proteção constitucional
e legal, sendo que o cuidado há muito tempo vem sendo tratado pelo direito de
família como um valor jurídico. Segundo a ministra este valor é apreciável e
com repercussão no âmbito da responsabilidade civil, porque constitui fator
essencial - e não acessório - no desenvolvimento da personalidade da criança.
‘Nessa linha de pensamento, é possível se afirmar que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem obrigações
jurídicas em relação à sua prole, que vão além daquelas chamadas necessarium
vitae‘. O cuidado é um dever e não uma escolha dos pais. A falta deste cuidado
gerado pelo abandono material ou moral resulta em danos aos filhos, o que deve
ser devidamente observado e garantido aos filhos o direito de reivindicar uma
indenização. As indenizações, de forma alguma, eliminam a dor sentida por uma
perda ou por abandono, mas servem como medida pedagógica e sinalizam para toda
a sociedade que o Estado não é omisso em relação aos que descumprem os deveres
legais, mesmo sendo o dever de cuidar de um filho. Ser abandonado pelo seu pai
e ser tratado com indiferença, principalmente em relação à sua atual família,
fere de maneira contundente a dignidade da pessoa, pois causa tristeza, mágoa,
dor, provoca uma total desordem estrutural na vida deste ser humano e não há
como sair desta situação sem marcas e danos. Ser abandonado não é natural, pois
não fomos projetados pela natureza para o abandono daqueles que nos conceberam
a vida e que deveriam nos amar, cuidar e proteger. E nesta seara as
consequências sociais do abandono são sentidas por todos nós, pois vivemos em
sociedade e não de forma isolada. O Estado não pode obrigar um pai a amar um
filho, no entanto, pode exigir que ele cumpra com o dever de cuidar, e se não o fizer, que seja
compelido a indenizar o dano que causou por descumprimento de lei. A decisão do STJ sinaliza no sentido de que a nossa sociedade vê
no cuidado um valor que não pode ser desprezado ou mesmo minorado. É uma
decisão acima de tudo pedagógica. Continuar a fechar os olhos para os danos causados aos filhos pelo
abandono por medo da monetarização da família e do afeto é desprezar o dever do
cuidado que os pais têm com relação aos filhos. Como consequência, as varas de
família estão lotadas de litígios pautados na falta de compreensão da grande
missão que é ser pai e mãe, na supervalorização das questões financeiras em detrimento
do ser humano, mesmo levando em consideração que este ser humano é um filho, o qual
não tem culpa da falta de amor e tolerância dos seus pais. Já estava passando
da hora de o STJ perder o medo da tal proclamada indústria do dano moral e fazer o que
sempre esperamos dele: que decida pela dignidade da pessoa humana e pelo
cumprimento dos deveres familiares, porque somente assim seremos realmente um
Estado forte. Os valores maiores são o cuidado e a solidariedade entre pais e
filhos. Estes são a base da família e de toda sociedade. Uma decisão como esta
traz à tona a discussão dos nossos valores e fortalece o Estado Democrático de Direito, no sentido de que deveres são deveres
e devem ser cumpridos em todo âmbito social, principalmente na família. Finalmente,
resta concretizado após anos de longa espera que o cuidado com os filhos tem
raízes em nossa sociedade e que este é um elemento objetivo do direito.
ANA LÚCIA RICARTE, ADVOGADA, DIRETORA DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA EM
MATO GROSSO E PRESIDENTE DA COMISSÃO DOS DIREITOS DA MULHER DA OAB
Fonte: A gazeta
Comentários
Não cabe ao judiciário a tutela do amor. Somos livres para amar a quem quiser...
Isso não retira a obrigação desse pai no sustento desta filha, claro que não, e no caso em tela, o pai sempre honrou com suas obrigações, arcando com alimentos mensalmente.
Cuidado como valor jurídico, neste caso é amparar materialmente essa filha para que ela não tenha dificuldades financeiras para tocar a própria vida.