CARTA DE DESPEDIDA DE UM PROMOTOR AO SE APOSENTAR
Carta
de despedida de Roberto Tardelli, depois de 31 anos no Ministério
Público de São Paulo. Tardelli foi o responsável pela acusação no caso
de Suzane von Richthofen. Com sua aposentadoria — publicada no Diário
Oficial de sexta-feira (19/9) —, ele voltará a advogar.
Estou indo, peguei meu boné.
Quero dizer a cada um que foram os melhores trinta anos
de minha vida esses que passei no MP.
Ter
sido promotor de justiça foi um grande barato. Descobri e continuo
descobrindo que podemos melhorar a vida das pessoas, que somos
protagonistas e seremos protagonistas da construção republicana e
democrática do Brasil. Não somos apenas indispensáveis, somos parte do
DNA de uma nação que ainda se percebe e ainda se conhece.
Ao
contrário do que gostaria de dizer, se pudesse, não faria tudo da mesma
forma que fiz. Teria a mão menos pesada quando a tive pesada (faz tempo
isso), soltaria mais a alma e a voz e prenderia menos pessoas. Seria
menos formal nas solenidades protocolares. Ouviria mais axé, comeria
mais carne ainda do que já tenho comido e beberia mais vinho e menos
cerveja. Iria mais ao cinema e pouco me lixaria com prazos de réus de
bobagens que sequer justificariam nossos processos.
Dirigiria
mais cuidadosamente meu carro e, quando fosse aumentar a música, eu o
fizesse com maior determinação, para espalhar mais João Gilberto pela
cidade. Não precisaria ser autoridade o tempo todo e faria questão de me
sentar na arquibancada. Nem por decreto, por nada nesse mundo subiria
nos malditos elevadores privativos. Jamais.
Na
audiência, chamaria a todos pelo nome, inclusive e principalmente o réu
e a vítima. Chamar as pessoas pelo nome lhes dá a humanidade que essas
expressões consagradas retiram: réu e vítima, sem nome ou rosto e
procuraria deles me lembrar, pois que sempre existem coincidências:
passeando no parque, encontro o réu e seu filhinho. Ele, um pai exemplar
e amava mesmo o filho, deficiente mental profundo; num dia de fúria,
arrancou a orelha de um balconista.
Pediria
mais absolvições (no fim da reta, eu pedia; deveria ter feito mais isso
desde o início), sorriria mais, escreveria de forma menos catastrófica e
atenderia a todos. Serviria café à tia do
café.
Deveríamos usar
menos ternos, porque nada há de terno em nosso terno preto, vetusto, de
risca de giz. Respeitaria menos quem exigisse ser respeitado pelo cargo,
função, idade ou possibilidade de nos prejudicar. Ignoraria
corregedores e procuradores, fossem de justiça, fossem os gerais, fossem
aqueles que usassem o brega e horroroso anel de grau, tantos destinos a
um rubi e ele foi parar no dedo de um bocó. Não respeitaria o silêncio
grave dos corredores forenses. Talvez distribuísse apitos.
Escreveria
mais coisas da vida e menos coisas da lei nos processos ou inquéritos.
Citaria menos autores, principalmente aqueles que todos citam, os
consensuais, quase sempre burocratas e que conseguem acertar o fácil.
Iria atrás daqueles que prezassem a imprecisão, os que cultuassem a
dúvida e nunca, nunca, permitiria que certezas se instalassem em minha
mesa de trabalho.
Jogaria fora, poria no lixo, os carimbos.
Diria apenas, ok e seguiria o filme. Temos carimbos demais, carimbamos demais.
Nunca
os suportei e talvez os suportasse ainda menos, aqueles que dizem que
vivemos uma Guerra Contra O Crime ou aqueles super-heróis, cuja missão a
eles passada na Sala de Justiça os fizessem proteger a sociedade
ordeira. Não existe guerra alguma e estamos prendendo irmãos iguais e
sociedade alguma é ordeira, principalmente a que espanca crianças, mata
homossexuais, mulheres e tem sua polícia a executar pretos e pobres na
periferia.
Afundaria em
um lago distante quem dissesse que a lei confere direitos demais aos
criminosos. Pregaria na testa de quem dissesse Humanos Direitos um
adesivo: estúpido. Nenhum respeito teria por quem defendesse a pena de
morte e sugeriria que quem a defendesse começasse a praticá-la como um
direito pessoal em si mesmo e nos poupasse.
Abraçaria mais as
mulheres do busão e atenderia quem tivesse os filhos
presos com mais atenção, toda a atenção e não mediria esforços para que
não fossem humilhados nas visitas. Defenderia o meio ambiente e o
consumidor.
Não leria a Veja.
Teria medo de superpoderes e os guardaria onde estivessem protegidos de mim.
Ter
sido promotor foi a possibilidade mágica de “estar no fundo de cada
vontade encoberta”, que aproveitei o quanto pude, mudando sempre,
aprendendo sempre, diariamente. Vi até gêmeos de pais diferentes, vi
assassinos e vi a solidão que traziam nos olhos. Vi pessoas que cruzaram
os oceanos todos para adotar uma criança a quem pudessem amar
incondicionalmente.
Vi meninos de rua morrerem de AIDS. Um,
muito perto de mim, mudou minha forma de ver o mundo e tudo o mais que
ocorresse à minha volta.
Um processo muito peculiar e um caso
único que agitou o país me jogou para fora do que até então houvera
vivido e me fez em contato com a
população, de forma tão viva que eu deixei de ser apenas um promotor de
justiça e me tornei um falador e contador de história e aprumador de
realidades, algumas vividas outras nem tanto.
Ter me tornado
conhecido das pessoas será uma das coisas que jamais pagarei ao
Ministério Público e a esse ofício de Promotor de Justiça. Andei pelo
Brasil e descobri um país que nunca imaginei existir, seja por seus
contrastes, seja por sua pujança, pelos seus defeitos e pelos seus
encantos, mais encantos que defeitos. Pude externar minha opinião, que é
apenas minha, mas que foi ouvida mais do que eu supunha. Falei e falei
no sertão, nas caatingas e nos gerais. Em Sampa e no meu estado de São
Paulo, penso que fui a quase todas as faculdades. As que ainda não fui,
que me aguardem.
Fui paraninfo de jovens que me deram essa enorme honra. Tenho isso no coração.
Dentro
do Ministério Público, vi meus filhos, Fernanda e
Brenno, crescerem; conheci a Carla, a doce Carla, somente porque era
promotor de justiça. Dificilmente eu a teria visto ou seria por ela
notado se fosse astronauta ou sorveteiro, até isso o MP me proporcionou.
Fiz
bons amigos. Tenho bons amigos. No Ministério Público e nas pontes que o
MP constrói, na advocacia e na magistratura. Sempre que preciso de um
vinho, encontro comparsaria à altura. Há trinta anos que não bebo
sozinho e, vamos lá, admitam, isso é um feito.
Ficamos
chatos, chatinhos. Ficamos aqueles pentelhinhos sociais. Sou muito
cobrado por isso, mas fazer o quê?, são inflexões históricas,
inevitáveis, diante de nossa forma burguesinha de aquisição de talentos.
Sérios demais. Gente jovem que está deixando de sorrir para franzir o
cenho e não cumprimentar porteiros: o vento vira, creiam, como vira…
Estamos condenatórios e sei que haverá quem, chegando até aqui, ao ler
esse texto há de pensar que eu
surtei e que não era mesmo de confiança. Não nos damos conta que essa
fúria condenatória nos custará caro em breve, brevíssimo. Uma nação não
se constrói com condenações em série, pelo contrário.
Mas,
isso é assunto para outro dia. Agora, só quero dizer a todos que valeu.
Gostaria de beijar a todos, abraçar a todos. Quem não quiser, não
precisa me abraçar porque eu abraço sozinho, pronto. Abraçar é o que
importa e todos os amigos e amigas foram fundamentais nessa caminhada,
que adorei fazer, curti ao máximo fazer e sempre fiz, dando o máximo de
mim. Minhas mãos e minhas pernas, minha esperança. Meu amor pela vida.
Essa uma que me empurra para novas aventuras.
Beijos
Comentários
Ainda bem que o promotor iniciou sua carta dizendo que "foram os melhores trinta anos de minha vida esses que passei no MP".
Não se vive outra vida e as lições que tiramos, as fazemos em consequência da vida que levamos.
Meu avô era desembargador e não sei se ele viu os filhos crescerem tal qual o promotor conseguiu fazer. Quem professa a lei tira muito de sua vida e se doa demais as pessoas que nem sempre reconhecem. Um amigo do meu avô que trabalhou no supremo por muitos anos, quando se aposentou, foi morar no mato. Não suportava mais a palavra "lei".
Mesmo que no Brasil, as pessoas não respeitem a lei,não sei o que seria de nós se elas não existissem.
Uma carta para se pensar em cada linha.
Aproveito a vinda ao seu blogue para lhe convidar para a 9ª Edição do BookCrossing Blogueiro que acontecerá entre os dias 08 a 16 de Novembro.
Ficarei feliz com a sua presença se puder participar novamente!
Beijus,
Vim te avisar que falta apenas um dia para o início da 9ª Edição do BookCrossing Blogueiro... Espero contar com a sua presença novamente!
:)
Beijus,