A mulher que levou presos perigosos para sua casa
Em 1940, uma
senhora caminhava pelas ruas da Avenida Ipiranga em total desamparo. O
seu desespero, tão evidente, se dava por que ela não conseguira contato
com o filho. A senhora era mãe de um apenado que estava na antiga Casa
de Correção de Porto Alegre, e as restrições de acesso impediam que ela
pudesse vê-lo. Sensibilizada com a situação, Maria Ribeiro, que havia
estacionado seu carro na Avenida para amparar a idosa, consegue uma
autorização judicial. Aos 24 anos de idade, a jovem pelotense nascida em
27 de novembro de 1912 foi a primeira mulher permitida a entrar em um
presídio no Rio Grande do Sul. Lá, ela se depara pela primeira vez com a
realidade carcerária do estado.
Horrorizada
com a precariedade do local, que ficava submerso toda vez que havia
cheia no rio Guaíba, deu início à jornada que percorreu até o fim da sua
vida. Começou fazendo trabalhos sociais voltados à cultura com os
apenados. Ao mesmo tempo em que ministra aulas de música e teatros para
estes, começa a ter a curiosidade despertada por aquele universo tão
particular, pouco explorado pelos demais. Assim, acrescenta na rua
rotina um tempo para procurar, estudar e compreender outros possíveis
modelos de cadeias. Anos depois, o assunto se tornou seu Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) quando ela se formou na Escola de Serviço
Social, ainda na década de 40.
Antes
de sequer ingressar no curso, trabalhava como Funcionária da
Prefeitura. Assim, ela mesmo redigiu um ofício, assinado pelo prefeito,
autorizando a retirada de 36 presos para ajudar nas obra da prefeitura
que objetivavam a canalização do arroio Dilúvio. A Casa de Correção
concordou, mas com a condição de que fossem levados “os piores”. Foi o
que aconteceu. O juiz responsável pelo presídio na época disponibilizou
dois caminhões para que Maria Ribeiro levasse os apenados para seus
afazeres e os trouxesse de volta no final do dia. Acabou se arrependendo
da decisão que tomara sem nem se dar conta da responsabilidade, e
afirma que não conseguiu dormir pensando nos jornais do outro dia
noticiando a fuga em massa dos presos. Mas, ao contrário, no horário
combinado todos estavam de volta ao caminhão, cheios de esperança.
Foram esses homens que sugeriram a criação da casa que hoje é conhecida como Fundação Patronato Lima Drummond de Andrade.
Ocupando uma área de 1,35 hectares do bairro Teresópolis, o casarão foi
comprado por Cr$ 8 mil, dos quais 3 mil saíram do bolso da assistente social. A partir desse momento, surge um diferente modelo de família grande e singular como nenhuma outra. Movida, principalmente, pela confiança.
Confiança
era, aliás, palavra-chave no Lima Drummond de Andrade. Enquanto outros
estabelecimentos prisionais se preocupavam apenas com a punição dos
presos, Maria Ribeiro acreditava em suas recuperações. “Não existem
criaturas irrecuperáveis, mas métodos inadequados”, dizia. A vó, como
carinhosamente era chamada pelos detentos, buscava sempre ressaltar o
que cada um possuía de bom, por menor que fosse. A partir dessas
características, iniciava o trabalho individual de melhora, normalmente
obtendo êxito na recuperação e ressocialização destes.
Otávio Marcio Goulart da Silva
é mais um dos tantos admiradores da senhora que, ao longo de sete
décadas, impactou positivamente a vida de milhares de encarcerados. “Eu
acho que em mais de mil anos não vai existir outra pessoa que faça o
trabalho de conversa da dona Maria”, justifica ele, que aprendeu através
dos diálogos com ela a ser uma pessoa mais calma e tranquila.
Quem compartilha do mesmo sentimento é o juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Sidnei Brzuska.
Apesar de só ter tido contato com Maria Ribeiro nos últimos anos de
vida dela, não esconde o carinho e admiração que sente pela fundadora da
casa de detenção com menor índice de fuga até hoje.
“Aqueles que a sociedade dizia que eram os piores, eram os que ela mais procurava ajudar”. A frase é do empresário Luiz Carlos Butier.
Ele, que foi o primeiro preso no Brasil a cumprir pena por calúnia,
injúria e difamação, ressalva que os ensinamentos dela o reposicionaram
na vida. Quando ele chegou no Patronato, em 2006, a casa dela estava
sempre fechada. Curioso, sempre perguntava aos outros quem morava ali.
“É a vó”, lhe respondiam, acrescentando que ela foi a fundadora do Lima
Drummond de Andrade. Na época, era verão e Maria Tavares estava na
praia. “Quando ela voltou, todos os dias eu ia lá ver se tinha algum
sinal de luz ou se a casa estava aberta”, afirma Butier. Até que um dia,
finalmente, estava, e ele fez questão de se apresentar. Depois desse
episódio, ele dedicava diariamente um tempo para alcançar o café da
manhã para ela, e outro, quando ele chegava do trabalho, para conversar.
A palavra de alento e carinho era característica marcante da senhora de
olhos pequenos e ágeis, que não diferenciava ninguém. “Para elas, eram
todos iguais, eram todos anjos”. Em liberdade, Butier criou a ONG Fui
Preso, onde ajuda na ressocialização de outras pessoas que tiveram suas
vidas impactadas por algum deslize. Sempre que Luiz Carlos fala sobre a
organização, um sorriso brota de seu rosto, acompanhado da frase “a dona
Maria é a minha musa inspiradora”.
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